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Cumaru: memória e futuro no fortalecimento da cadeia produtiva tradicional dos Mebêngôkre-Kayapó
Entre os meses de junho e agosto, quem entra na floresta amazônica pode sentir o cheiro adocicado indicando a florada do. Nativa do Brasil, a Dipteryx odorata é uma árvore de madeira de alta qualidade e densidade, alvo de disputa entre madeireiros e pode chegar até 30 metros de altura. Quando o inverno amazônico se aproxima, é desta árvore gigante que caem os frutos maduros do cumaru – ou krem yky, como é chamado entre os mebêngôkre.
Para os Mebêngôkre-Kayapó, o cumaru é alimento, medicina e oportunidade de geração de renda para as aldeias. Antes de partir para a coleta, as famílias se preparam com suas pinturas corporais a base de jenipapo e urucum e abrem picadas floresta adentro. Quem sabe onde está o pé de cumaru vai na frente e na sequência vão chegando esposas, filhos, netos para ajudar. O trabalho é exaustivo, envolve procurar os frutos no chão da floresta, afastar com ajuda de um facão as folhas e galhos secos, coletar os que estão íntegros e armazená-los nos cestos ou sacas. Tudo isso sem descuidar dos animais peçonhentos entre a folhagem seca como cobras, escorpiões e aranhas.
“O cumaru para nós, Kayapó, é bom pra tosse, pra quando a pessoa está gripada, pra quem está com dores no corpo. Ele tem fins medicinais.”, explica Doto Takak Ire, presidente do Instituto Kabu.
Apoiada pelo Fundo Kayapó desde o seu primeiro ciclo de investimentos e tradicional entre os Mebêngôkre, a coleta do cumaru vivenciou os efeitos devastadores da emergência climática. Acostumados com colheitas abundantes, em 2024, viram o declínio na safra do cumaru se transformar em um cenário preocupante.
Na aldeia Pykany, T.I. Mengkrangoti, o impacto colocou em risco o repasse de investimentos destinados à atividade. Ao mesmo tempo em que as aldeias precisam atravessar um ano de alta incidência de focos de incêndios, segundo dados do Prevfogo (IBAMA, 2024), comprometendo as cadeias produtivas da biodiversidade amazônica, as organizações precisam criar estratégias para garantir a segurança alimentar e a possibilidade de geração de renda das aldeias. “A safra do cumaru está fraca por anos seguidos e o projeto vai parar”, disse Luiz Carlos Sampaio, assessor técnico do Instituto Kabu, aos caciques e representantes da T.I. Mengkrangoti. Diante da situação, as lideranças kayapó tomaram uma decisão: retornar à aldeia Pykany velha, antigo território de onde os habitantes da aldeia se mudaram após um acidente de avião em 2015.
Tradicionalmente seminômades, os Mebêngôkre têm suas formas ancestrais de se relacionar com o território e poucas pessoas estavam dispostas a adentrar a antiga aldeia mas a decisão estava tomada. “Nós vamos voltar e trazer o cumaru.”, afirmou o cacique Àbiri depois de se reunir com algumas famílias e decidir que organizariam a expedição e partiriam em direção à Pykany velha para retomar a coleta do cumaru.
Fortalecer as cadeias da sociobiodiversidade é fortalecer a autonomia das aldeias mebêngôkre, um dos compromissos do Fundo Kayapó desde sua criação. Ao longo dos cinco ciclos de existência do mecanismo financeiro, R$6,34 milhões foram investidos em atividades produtivas sustentáveis, sendo as cadeias tradicionais do cumaru, da castanha e mais recentemente do cacau representando quase 30% do total deste investimento.
Embora a estruturação de cadeias produtivas demande aportes contínuos para apoio técnico e institucional a longo prazo, a aposta na geração de renda direta para as famílias mebêngôkre a partir do extrativismo que mantém a floresta em pé é um dos impactos positivos deste eixo de ação do Fundo Kayapó. O acesso a mercados justos, a possibilidade de obter certificações agroflorestais e a implementação de ações estratégicas como o beneficiamento local são bons prognósticos para garantir cada vez mais participação comunitária e transformação dos conhecimentos tradicionais em autonomia financeira.
Neste ciclo, mesmo com os resultados das safras em declínio, o Fundo Kayapó apostou junto à comunidade de Pykany e destinou um aumento de quase 150% nos investimentos direcionados para na coleta de cumaru em relação ao último ciclo, correspondendo a R$175.000,00 em recursos diretos no apoio à atividade. Até hoje, mais de R$2 milhões já foram investidos na cadeia produtiva do cumaru pelo Fundo Kayapó.
O manejo tradicional mebêngôkre respeita o ciclo natural da floresta, focado nos frutos maduros caídos. A expedição, que durou cerca de 20 dias dias floresta adentro, contou com cinco famílias de Pykany envolvidas diretamente e reforça o etnoconhecimento dos Kayapó como um caminho de fortalecimento econômico aliado à conservação. Ao retornarem pela primeira vez em uma década ao antigo território, os moradores de Pykany encontraram a força de uma floresta regenerada, com frutos e caça em abundância e uma coleta como já não se via, que resultou em uma safra de 215 kg de cumaru. O retorno à Pykany velha demonstra a importância dos saberes tradicionais tanto no manejo ambiental quanto na forma única de modos de ocupação do território característico do povo Kayapó.
Cuidando dos frutos e semeando o futuro
A coleta do cumaru é um trabalho minucioso, de rotina exaustiva. As expedições são longas e envolvem deslocamentos por barco e por vias terrestres e requerem suporte para as famílias coletoras. Conhecido como baunilha da Amazônia graças a uma substância chamada cumarina, responsável pela semelhança aromática, o cumaru é um fruto de casca grossa, difícil de abrir. Dentro deles, estão as sementes lisas e amarronzadas, depois de secas, elas ganham rugas e uma coloração quase preta. Cada etapa, desde a coleta dos frutos até seu beneficiamento, seja para consumo ou comercialização, envolve processos passados dos mais velhos aos mais novos, geração a geração.
Utilizado tradicionalmente para fins medicinais entre os Kayapó, o cumaru tem como uma de suas destinações a indústria farmacêutica. Extremamente aromáticas, as sementes são utilizadas amplamente na cosmetologia, a partir da extração do princípio ativo da cumarina para óleos perfumados e também apreciadas na gastronomia.
Já de volta à aldeia, o processo de secagem acontece em várias fases. Cada família coletora espalha suas nozes ao sol durante alguns dias. Depois é preciso abrir para retirar as sementes. Uma a uma, as nozes são abertas com auxílio de um facão ou martelo, as sementes são retiradas e separadas e então uma nova secagem é feita, mas desta vez à sombra, dentro das casas.
Ações como o fortalecimento de cadeias produtivas sustentáveis como o cumaru, a castanha, o babaçu, o cacau e outros produtos da biodiversidade, são eixos estratégicos do Fundo Kayapó junto às organizações indígenas para a proteção dos modos de vida tradicional dos mebêngokrê. No escopo destas ações, a gestão socioambiental, o monitoramento territorial e a continuidade das práticas tradicionais de manejo, cultivo e convívio revelam a força dos conhecimentos ancestrais mebêngôkre aliada a projetos como o do cumaru.
A história do retorno à aldeia velha é ao mesmo tempo prática e simbólica: olhando para as formas de interagir e habitar o território de uma perspectiva mebêngôkre, é possível perceber que a retomada de um território é a retomada de modos tradicionais de ser, de fazer e de estar característicos de um povo. Se os deslocamentos populacionais típicos do nomadismo sempre estiveram associados a uma ideia primitiva e arcaica, dentro do contexto criativo kayapó, se revelam como possibilidade de garantir não só o futuro do cumaru, mas da floresta e de suas populações.
O Instituto Kabu é uma organização comunitária criada e dirigida pelos Kayapó do subgrupo Mekrãgnoti. Com atuação regional, reúne atualmente 18 aldeias, localizadas em três diferentes terras indígenas. No 5º ciclo de investimentos do Fundo Kayapó, o Instituto Kabu, assim como as outras duas organizações de atuação regional (Associação Floresta Protegida e Instituto Raoni) conta com um aporte de R$1.000.000,00 para executar atividades voltadas à proteção territorial, gestão ambiental, fortalecimento institucional e desenvolvimento de cadeias produtivas. Estas ações são parte do projeto Gestão Territorial e Ambiental dos Territórios Kayapó no Cinturão da BR-163, contemplado pela chamada pública do atual ciclo do Fundo Kayapó.
Conheça mais sobre o manejo tradicional do cumaru feito pelos mebêngôkre: Coleta de cumaru dos Kayapó-Mekrãgnoti.
Os recursos destinados ao 5º Ciclo do Fundo Kayapó são provenientes de doações do Fundo Amazônia, do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e da Conservação Internacional Brasil e têm o FUNBIO como gestor financeiro.
