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Reestruturação do Fundo Kayapó: rumo a um novo modelo de governança
Durante três dias, o encontro organizado pelo Fundo Brasileiro para Biodiversidade (FUNBIO) e pela Conservação Internacional – Brasil (CI-Brasil) contou com diversas discussões, dinâmicas em grupo e apresentações sobre temas importantes para a estruturação de uma governança mais participativa e indígena para o Fundo Kayapó. As oportunidades e os desafios que atravessam a organização sociopolítica dos territórios, como a mineração em terras indígenas e o futuro pós-desintrusão também foram pautas relevantes discutidas ao longo do encontro.
No início do encontro, Sandro Takwyry Kayapó, da T.I. Kayapó, lembrou da tradição mebêngôkre em abrir os trabalhos sempre com um ritual. Em instantes, uma roda com guerreiros e guerreiras se fez no centro da sala e depois de um canto potente, todos estavam prontos para retomar a rodada de apresentações individuais e compartilhamento de expectativas para os próximos dias. “Espero que o nosso encontro gere bons frutos.”, disse Doto Takak Ire, liderança da T.I. Mekragnoti e presidente do Instituto Kabu.
Dando continuidade à rodada coletiva de apresentações e expectativas, a Diretora de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais da CI-Brasil, Renata Pinheiro, que atua no Fundo Kayapó desde sua criação, reforçou a importância do coletivo para cumprir o objetivo do encontro. “Espero que a gente consiga fazer uma conversa sincera, amadurecer as discussões e caminhar cada vez mais para que este mecanismo deixe de ser para os Kayapó e passe a ser dos Kayapó.”, pontuou.
A apresentação do cronograma do encontro foi feita pela analista de projetos Amanda Carrara, com tradução para o mebêngôkre feita por diferentes membros do comitê. Além de Sandro Kayapó, Doto Tak Ire, Patkore Kayapó e Irepoiti Metuktire revezaram-se em garantir que a tradução na língua indígena fosse realizada. O roteiro incluía uma revisão dos encaminhamentos da primeira reunião do Comitê e o desenvolvimento de ideias para novos modelos de governança para o Fundo. “A ideia é que a gente se divida em grupos para refletir e pensar pela primeira vez juntos como poderia ser essa governança. Não estaremos decidindo algo definitivo, mas dando um passo importante para o processo.”, explicou Amanda.
A entrada de organizações locais neste ciclo com o objetivo de democratizar o acesso aos recursos do Fundo e como forma de garantir novas possibilidades de geração de renda serviu como introdução para todos refletirem sobre as instâncias representativas de cada território, as atividades e projetos que podem ser construídos compreendendo todo o bloco Kayapó e sobre as consequências da desintrusão do garimpo.
Sandro, da T.I. Kayapó, uma das regiões mais afetadas pela atividade garimpeira, revelou a insegurança de acompanhar a construção das bases da operação de desintrusão no município de Cumaru do Norte, um dos acessos à T.I. e a necessidade de alinhar o pós-desintrusão junto ao poder público. “Ninguém sabe o que vai acontecer depois da desintrusão.”, disse. Em seguida, o assessor indigenista Adriano Jerozolimski – que atua como assessor do povo Kayapó há décadas e é mais conhecido como Pingo – chamou atenção para a necessidade de buscar alternativas para os indígenas envolvidos com atividades ilícitas, para que tenham opções de renda quando os garimpeiros forem embora. E ponderou: “Nenhuma organização parceira ou o Governo vai pagar para alguém deixar de fazer coisa errada. Porque coisa errada tem que deixar de ser feita.” Doto compartilhou sua experiência de anos atrás, quando foi membro do comitê do plano emergencial de compensação junto a comunidades mebêngôkre do Xingu, na época da implementação da usina de Belo Monte. “Era toda semana o mercado lotado de mebêngôkre. Mas depois que o emergencial acabou, eu vi o que aconteceu.”, disse o presidente do Instituto Kabu numa alusão ao risco que as comunidades mebêngôkre estão expostas se não se engajarem em atividades produtivas que sejam uma alternativa ao garimpo, reforçando a urgência em reverter o trabalho das organizações em benefícios ligados à defesa do território e ao desenvolvimento de cadeias produtivas.
As Menire Kayapó
A participação das menire foi representada por lideranças femininas de diferentes territórios e organizações, como Pahn-Ô Kayapó, Diretora Financeira do IK e membro do movimento de mulheres da região da T.I Baú. “Minha expectativa é criar algo que possa beneficiar toda a classe indígena e desenvolver o trabalho das mulheres.”, afirmou. Nhakton Kayapó, vice-presidente da AFP e liderança da T.I. Kayapó, falou sobre a importância da representatividade das organizações nas discussões sobre o fundo. “É importante que as comunidades saibam do Fundo Kayapó pelas organizações e seus representantes.”
Irepoiti Metuktire, representante do Departamento das Mulheres do Instituto Raoni, chamou atenção para importância de estar presente no segundo encontro como parte do comitê e intérprete das menire que estavam ali e falam pouco o português. Também lembrou da responsabilidade de ser representante de sua comunidade neste encontro em Brasília. “Lá no meu território as mulheres sabem o que é o Fundo Kayapó. Eu voltei do primeiro encontro de governança contando o que era o Fundo, explicando que ele é importante. E vou levar de novo o que for discutido aqui.”, disse a jovem liderança das mulheres da aldeia Piaraçu, T.I. Capoto/Jarina.
Além de Panh-Ô, Irepoiti e Nahkton Kayapó, Nhakanga Kayapó, cacica de Gorotire, na T.I. Kayapó e Mayalu Txucarramãe, Coordenadora Executiva do Instituto Raoni também participaram do encontro. Contextualizando suas realidades locais e atuações junto a suas comunidades e organizações para o fortalecimento da proteção de suas terras, seus modos de vida e das iniciativas das menire por todo o território mebêngôkre.
A experiência do Podáali como um fundo de gestão indígena
Antes de começar sua apresentação, Claudia Baré tirou os sapatos e aproximou do grupo um pequeno vidro. “Este aqui é um óleo de cedro, para renovar as energias. Eu vou pingar na palma da mão de cada um e vocês vão esfregar as mãos e aspirar. Depois vocês podem encostar as mãos no coração.” Passando de um a um, Claudia preparou o ambiente para compartilhar a experiência de criar e gerir um fundo indígena no Brasil.
Claudia Soares pertence ao povo Baré, que habita a região do alto rio Negro e é diretora do Podáali – Fundo Indígena da Amazônia Brasileira. O Podáali foi criado em 2019, formalizado em 2020 e representa os nove estados amazônicos. Construído por iniciativa da COIAB, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, o Podáali atravessou diversas fases desde a idealização até se estabelecer.
“O Podáali surge da necessidade de trazer financiamento para as comunidades.” Claudia explicou que antes de saber responder o que esperavam do fundo, era preciso fazer um trabalho de entender o que é e como um fundo opera para só então passar para a fase de estruturação. “Assim como vocês estão fazendo, criamos comissões e tivemos intercâmbio com outras iniciativas para desenvolver a nossa governança. Não foi fácil.”
Uma linha do tempo mostrou as conversas iniciais sobre a criação do Fundo até o lançamento do Podáali, em 2019. O primeiro ciclo de gestão durou 4 anos e foi indicado pela COIAB, até que a governança do fundo estivesse estabelecida e pronta para eleger seus novos representantes e membros. Encontros regionais, assembleias nas comunidades, conversas com as lideranças, com os departamentos das organizações, com parceiros, foram muitas as colaborações até que o fundo estivesse pronto. Aos poucos e envolvendo representantes indicados por organizações mais experientes para seguir o trabalho de estruturar instâncias e estabelecer atribuições para a composição do fundo, o Podáali foi chegando no formato da grande árvore que simboliza sua governança.
“Se você tem uma raiz forte, a sua árvore cresce e dá frutos. E é isso que nós queremos. “
Raízes, galhos, tronco e folhas formam uma árvore, numa simbologia que representa a governança do Fundo. Na base, a instância soberana: a assembleia geral, formada por quem está no chão da aldeia. Nas outras instâncias como o Conselho Deliberativo, doadores, grupos de trabalho, comissão técnica e diretoria há membros eleitos e indicados de acordo com critérios que vão desde a necessidade de formação técnica para desempenhar uma determinada função até o domínio de saberes tradicionais ou a trajetória de luta. “Lideranças atuantes, que estão há muito tempo no movimento indígena e abriram caminho lá atrás, independente de formação são sempre consideradas nas tomadas de decisão. Mas o que vai garantir a representatividade do voto é o que for decidido nas plenárias regionais e validado pela Assembleia Geral.”, explica Claudia.
Depois de compartilhar os sistemas adotados pelo Podáali para definir as pautas a serem votadas em Assembleia e de que forma essas pautas eram revertidas em projetos, a segunda parte da apresentação teve foco em responder como garantir autonomia e participação no Fundo. “Posso dizer que, em linhas gerais, se resume a garantir uma gestão 100% indígena, o respeito às formas de organização social de cada povo e o exercício da escuta ativa em todas as atividades.”
No Podáali a governança foi definida antes da criação do Fundo, diferentemente do Fundo Kayapó que está, neste momento, em um processo de reestruturação. Se de um lado, havia desafios que levaram anos para fortalecer a estrutura-árvore do Fundo Podáali, os desafios para o Fundo Kayapó são outros, uma vez que o mecanismo já conta com uma estrutura de gestão em curso, assim como apoiadores, doadores e parceiros para facilitar a articulação e a implementação da nova governança que está sendo construída.
“Compartilhar como foi a formação do Fundo Podáali com os parentes kayapó foi uma experiência única. Falar sobre a experiência do Podáali e a construção da sua governança é contribuir com o povo Kayapó e criar uma relação de confiança entre nós, parentes e povos indígenas.” Claudia Baré
Aliança para o futuro
O segundo dia de reunião começou com o questionamento: como fazer do FK um elemento agregador, de união e fortalecimento? Pingo ressaltou a valia da troca de experiências entre as organizações.“Este grupo tem uma bagagem, uma trajetória que vem da experiência de três grandes organizações do povo Kayapó para buscar união e entendimento. O assessor lembrou que a união de lideranças fortes podem fazer total diferença no futuro do território.
Po-y, liderança da T.I. Kayapó, deu continuidade à ideia de ação em bloco: “Temos organizações diferentes mas somos todos Kayapó. Precisamos nos juntar.” A coordenadora executiva do IR, Mayalu Txucarramãe, lembrou da relevância das ferramentas já validadas como os protocolos de consulta e também da participação das lideranças nas discussões sobre gestão e governança. “Somos organizações representativas do territórios, estamos aqui discutindo as formas de governança de um fundo que é de todos nós.”, destacou Mayalu.
Coletivo, construção e aprendizado
As reflexões sobre a incorporação dos sistemas de representação kayapó de forma a garantir legitimidade na composição das instâncias de governança continuaram como pauta. Partindo dos exemplos abordados na apresentação do Fundo Podáali e outros momentos da reunião, Dante Novaes e Takakpe Metuktire apresentaram alguns pilares fundamentais do que se pode esperar de uma boa governança: transparência, equidade, representatividade, agilidade e viabilidade financeira.
Resultados e encaminhamentos para o futuro
O último dia de reunião começou com os grupos engajados em discutir os detalhes finais de suas propostas antes de apresentá-las para os membros do Comitê e demais participantes. Com base nas trocas realizadas nos dias anteriores, cada grupo preparou um esboço de estrutura visando a autonomia Kayapó em relação aos kuben (não-indígenas) e o fortalecimento da gestão Mẽbêngôkre-Kayapó. A apresentação dos grupos abriu espaço para novas reflexões sobre as diferentes formas de organização, fazendo da dinâmica uma oportunidade para a construção de importantes marcos para a futura governança.
Transformar o FK em uma ferramenta de fato Kayapó, segundo Renata Pinheiro, da CI-Brasil, é o maior compromisso hoje da organização que participou da criação do fundo em 2011. “Para manter esse mecanismo e garantir a sustentabilidade financeira dele, é preciso construir um modelo que vocês se sintam de fato representados.” Trazendo os Mẽbêngôkre-Kayapó como aliados fundamentais na estratégia de captação de recursos junto a organizações e entidades filantrópicas dentro e fora do país, Renata lembrou que o fundo foi criado em um contexto diferente, não sendo apenas mais um projeto que pode ser representado pela CI ou por qualquer outra organização que não tenha ampla participação mẽbêngôkre.
Fazer do fundo Kayapó um mecanismo de gestão indígena e autônoma é um processo em curso, onde cada etapa cria bases para um futuro de fortalecimento. Como foi destacado em diversos momentos ao longo dos dias de encontro, o objetivo é dar continuidade às articulações que já estão em curso, trazendo as organizações maiores e mais experientes para apoiar as menores. O próximo encontro do comitê provisório de governança do Fundo Kayapó está previsto para acontecer ainda em 2025 e a expectativa é que o novo modelo de governança esteja estruturado até o fim do 5º ciclo.
