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Pastejo e fogo: uma história evolutiva que pode nos ajudar a proteger o Pampa
O Pampa, bioma do extremo sul do país, é marcado pelas paisagens campestres. Trata-se de uma vegetação rasteira e extremamente diversa que evoluiu sob condições únicas ao longo de milhões de anos. Dois elementos destacam-se nessa linha do tempo evolutiva: o pastejo, feito pelos animais já extintos da megafauna do continente sul-americano, e o fogo, iniciado por causas naturais como raios e a combinação de seca, calor extremo e acúmulo de biomassa. Essa história ancestral moldou as espécies de plantas presentes hoje no Pampa e pode indicar o caminho para restauração do bioma nos dias de hoje.
“Nós já sabíamos que o manejo era importante no Pampa, mas não tínhamos uma dimensão do quanto”, conta o pesquisador Filipe Ferreira da Silveira, doutorando da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), selecionado na chamada de 2022 do Programa Bolsas FUNBIO – Conservando o Futuro.
A pesquisa foi realizada numa área da Estação Experimental Agronômica da UFRGS, em Eldorado do Sul, que havia sido pastejada por ovinos e estava abandonada há cerca de 20 anos, sem nenhum tipo de manejo. “Com o abandono, vimos que muitas espécies arbóreas e arbustivas pioneiras começaram a colonizar a área, empobrecendo e descaracterizando a paisagem do campo”, conta Filipe.
A recuperação do bioma é considerada urgente. Entre 1985 e 2022, o Pampa brasileiro perdeu 2,9 milhões de hectares de vegetação nativa – o equivalente a 58 vezes a área de Porto Alegre.
O objetivo do pesquisador era entender se, por meio da reintrodução do manejo, tanto pelo fogo, com a queima prescrita da área, quanto do pastejo, com a introdução do gado, seria possível recuperar a diversidade de campos degradados e abandonados. Com o apoio do FUNBIO, ele conseguiu financiar as idas para Eldorado do Sul e a compra dos equipamentos necessários. “Minha pesquisa jamais teria saído do papel sem o FUNBIO”, diz.
Na sua pesquisa foram estabelecidas 200 parcelas divididas em quatro tratamentos distintos: fogo e pastejo; somente fogo; somente pastejo; e o controle, sem nenhuma ação. Todas as áreas foram previamente avaliadas, para saber que espécies estavam presentes antes da intervenção. O manejo teve início em 2023 e as parcelas foram monitoradas ao longo de um ano.
“Nos tratamentos em que houve fogo, a recuperação foi muito mais rápida. A transformação de ambiente arbustivo para campestre foi mais rápida, porém depois de um ano, nós percebemos que onde havia o pastejo havia um controle maior dos arbustos”, revela o pesquisador.
Em outras palavras, o fogo é eficiente em exterminar os arbustos, abrindo espaço para as plantas rasteiras voltarem, mas sem o manejo posterior, sementes dos arbustos puderam rebrotar. Já quando há pastejo, os animais conseguem comer as plantas arbustivas ainda em seu estágio inicial, antes do desenvolvimento de caules de madeira e fazem esse controle ecológico contínuo.
“O fogo é um agente inicial de transformação, enquanto o gado tem se comportado como um agente de manutenção desse campo. Os nossos resultados têm nos mostrado que o fogo num primeiro momento, atrelado com o gado em seguida, com uma pressão obviamente baixa e poucos animais, conseguem manter esse campo”, resume Filipe.
Atualmente, há mais de 280 espécies de plantas na área. A maior parte, entre 70 e 80%, são espécies campestres, inclusive algumas ameaçadas de extinção, como o bolão-de-ouro (Schlechtendalia luzulifolia) e o guaco (Mikania viminea), ambas classificadas nacionalmente como Em Perigo de extinção.
“O fogo no primeiro momento parece assustador, porque a superfície do solo fica completamente preta de cinzas e não tem nada verde ali. Mas um, dois dias depois nós já começamos a ver os primeiros indícios de rebrotamento e em uma semana já tínhamos um campo verdinho. Ainda pouco estruturado, claro, mas com grandes sinais de recuperação. E um mês depois o campo já estava muito fechado e bonito”, pontua o pesquisador da UFRGS.
Os resultados – ainda em fase de finalização – reforçam a adaptação e tolerância das plantas nativas do Pampa às queimadas, e o papel da pecuária como matriz produtiva que pode ser aliada da conservação do bioma. Entretanto, a atividade, que já foi uma força econômica da região, tem perdido espaço para o avanço da soja, silvicultura e lavoura – usos incompatíveis com a manutenção dos campos nativos.
“Está cada vez mais difícil achar relictos campestres. E quando encontramos um campo nativo, muitas vezes, por não ter sido manejado, ele está descaracterizado, cheio de arbustos que acabam sombreando e abafando as espécies mais rasteiras que não conseguem dominar essa paisagem”, contextualiza o pesquisador que espera, com seus estudos, mostrar o caminho possível para restaurar campos abandonados e devolver a eles sua rica e única biodiversidade.
